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domingo, 26 de abril de 2020

O profético Nelson Rodrigues: em O Homem Fatal


Nelson Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912 - Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) foi um notável escritor, jornalista, romancista, teatrólogo, contista e cronista de costumes e do futebol brasileiro.
Nelson era um conservador de direita, mas ao mesmo tempo que reacionário na ideologia e revolucionário na dramaturgia, ele não se conformava com a mediocridade e imbecilidade dos seus contemporâneos do século 20. Imaginam Nelson lendo o que hoje se publica na internet? Nelson iria enlouquecer de raiva se lesse as postagens e/ou comentários nas redes sociais, um terreno fértil para os idiotas que ele imortalizou em sua extensa obra. Nelson Rodrigues tinha uma obsessão pelos idiotas. Combateu-os a vida toda, mas eles venceram, e se multiplicaram.

Foi premonitório numa das suas célebres frases sobre este fenômeno humano: “Os idiotas irão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”

Texto de Nelson Rodrigues (fim dos anos 60 ou início dos anos 70):
"Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: - tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: - o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem.

Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: - “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma objeção. E, então, insistia, heroico: - “Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.

E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos “melhores”. Só os “melhores”, repito, só os “melhores” ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: - o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os “melhores” podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: - “Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido”. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.

De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: - a vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: - trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os “superiores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.

Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a “invasão dos idiotas”. E, de fato, eles explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas."
(Nelson Rodrigues, em "O Homem Fatal")

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