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sábado, 24 de outubro de 2020

A DEFICIÊNCIA, APESAR DOS PESARES


(Homenagem de Glaucia PontesDIA INTERNACIONAL DE LUTA CONTRA A POLIOMIELITE E A SÍNDROME PÓS PÓLIO - SPP 

Eu sempre tive medo de falar em público,
Medo do diferente, do novo, daquilo que me observa de perto.
Medo do padrão, das beldades que exibiam seus corpos em meu derredor.
Fugia, me encapsulava por detrás das paredes geladas.
Via na solidão o subterfúgio pra evitar a dor,
A dor da feiura explícita,
A avassaladora dor da rejeição.
Passei muito tempo
Ditando regras inteiriças pra minha vida,
Desencastelei muitos sonhos
Dantes mesmo que eles chegassem.
Reprovei ações e reações,
Posterguei a mim mesma
Sem os escrúpulos do amor próprio.
Criei meus albergues vazios
E resfriados pela falta de amor.

Mas o tempo passou,
O horizonte declinou à minha frente,
Descortinou a sutileza da efemeridade.
Entendi que o trem se vai e as estações são inesperadas.
Muitas vezes, ele muda as rotas
E as rugas chegam pra quem nem imaginava,
Os saltos quebram,
Os batons escarlates se desbotam,
Chega a morbidez para as castas ilesas.
Muitas fortalezas sucumbem
Enquanto ossos quebrados se refazem.

Não há certeza no amanhã
Nem dotes ou sedes que durem pra sempre. 

O mundo é um novelo multicolor
E nós fazemos parte dele,
Apesar dos pesares.

Em 24.10.2020

Publicado na página ECOS DE UMA VIDA


quarta-feira, 26 de maio de 2010

O MENINO COM DEFICIÊNCIA (José Bonifácio - SP)

Clique nas fotos para ampliar

Já era noitinha...O menino calçava o pé pequeno e defeituoso na sua alpargata e saia pela praça, ora caminhando com cuidado, ora saltando com a perna sadia (esquerda) para proteger o pé dolorido ou tentando disfarçar a sua anomalia,  dessa forma chegava à casa da bondosa *dona Diná para assistir televisão, pois havia poucas casas com aparelhos de TV naquela época.
Ficava quietinho num canto junto com outros meninos vendo os filmes de bang-bang, aventuras, policiais etc. ele não entendia muita coisa, mas o mundo naquela telinha o divertia, o deixava curioso, o levava a sonhar, a questionar sua vida e imaginar o que havia além dos seus horizontes...
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Outras vezes aparecia na casa do Nelson e dona Maria pais do seu amigo Thales Pereira. Lá num canto da sala da TV  já tinha sua cadeira cativa sempre a sua espera, ali ficava em silêncio quase oculto, só lembravam da sua presença quando ouviam a sua gargalhada repentina, por causa de alguma cena engraçada na TV...
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Além de ver televisão, o menino às vezes aventurava-se a procura de algum tesouro num deposito de sucatas. Ia escarafunchando até encontrar o que mais lhe interessava, livros de aventuras, Gibis, romances, jornais e revista velha, quantas novidades ele foi desvendando, imaginem um dia ele encontrou um livro em espanhol que dava dicas de como fazer um parto, outro sobre o primeiro transplante de coração, e assim foi se alimentando de conhecimentos que outras pessoas jogavam no lixo.
Ainda era criança o seu estado físico não o incomodava, brincava, tentava jogar bola, mas se outro menino o acertasse no tornozelo deformado as dores vinham, e saia mancando ou pulando, sentava num canto e por lá ficava choramingando até se recuperar... E depois devagarzinho e teimoso ia novamente a se arriscar no meio da molecada...
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A sua dificuldade de caminhar o levava a um sonho: um dia ganhar uma bicicleta, mesmo contra a deficiência causada pelas sequelas da poliomielite: atrofia muscular na perna direita, o problema no pé e as opiniões dos pessimistas ele tentou... Tentou... Tentou...
E assim um dia numa bicicleta emprestada do seu amigo, apoiando-se nos muros, ele conseguiu equilibrar-se e com a perna esquerda foi levando os pedais rua abaixo... Até hoje vem a minha memória a festa do seu amigo e a torcida das outras pessoas, para que ele continuasse a pedalar...E ele conseguiu...
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Uma tragédia caiu sobre sua vida, seu pai adoecera e pouco tempo depois veio a falecer. Com a morte do seu pai a sua vida iria tornar-se difícil...Na sua fantasia de criança havia ainda uma esperança que seu pai não havia partido desse mundo, chegou o procurar até dentro dos armários sismado que ele estava escondido com sempre fazia nas suas brincadeiras. Seu pai, seu herói realmente havia partido...Um dia ele imaginou um escada que o levaria ao céu que logo se dissipou. Quando a realidade caiu dura e fria o menino chorou muito, não haveria mais jeito, nunca mais viria seu pai...
Sua família agora resumia em sua mãe e uma irmã mais nova, os outros parentes distanciaram-se... Cada um tinha sua vida (???????)
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Sempre pelos cantos lendo seus velhos livros, alguns o rotulavam de "boboca", outros se referiam a ele como um menino "problema" porque quando seu interior chorava e o seu corpo tremia, achava consolo debaixo de alguma cama da casa e junto com pares de calçados, algum gato preguiçoso e  envolto no seu silencio adormecia...
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À noite ele ia para uma pracinha próxima a sua casa e tentava brincar com os meninos e meninas, que na sua maioria eram brincadeiras de pega-pega, bola queimada, pula corda. Brincadeiras que ele não conseguia participar. Uma vez ou outra tentava, mas sua perna direita com músculos atrofiados pela paralisia infantil e o pé dolorido não permitiam.  

Chegava o tempo das aulas...

Agora nas manhãs o menino começava enfrentar o mundo... Ia para a escola e ficava encolhido num canto até à hora do "sinal", depois em fila com outros alunos iam todos para sua classe, escolhia sempre um dos últimos bancos... Preferia ficar sozinho tinha pavor de ser descoberto, e quando as abordagens aconteciam com aquelas perguntinhas inocentes ou maldosas o menino não respondia, porque na sua visão já se via diferente de outros meninos, e não tinha encontrado nada em si que poderia complementar as suas limitações.

Assim o menino já começava a penetrar nos mistérios da adolescência, a imaginar coisas intimas que logo de inicio se excluiu, pois o julgamento de si próprio era terrível, se enxergava roto, torto, desordenado, e não encontrava alento para que isso se resolvesse. A inocência que antes era a sua armadura contra o mundo foi-se quebrando, e o mundo escolar começou a representar para ele um lugar de tormentas e aflições.

O único sentido na sua vida além das curiosidades nos livros encontrados na sucata, era a uma velha bicicleta que ganhou da sua mãe. E pedalando com a força da perna esquerda, corria pelos arredores da cidade em companhia de seu periquito que ia agarrado no guidão ao sabor do vento, buscavam nos campos a liberdade e outros seres viventes que apenas lhe traziam suas plumas, suas cores, seus cantos e nunca lhe perguntavam por que não caminhava direito?
Num destes passeios o menino encontrou um passarinho com uma asa ferida, colocou a sua mãozinha sobre a ave pediu a Deus e disse: "voe eu te ajudo" e o passarinho voou... A graça do passarinho entre os galhos se desfazendo do medo, despertava no menino um misto de ternura e companheirismo, o bichinho havia encontrado ajuda... Em vôos curtos ia para uma árvore, outra árvore, e fugiu para a floresta...

Completava 13 ou 14 anos, órfão de pai foi obrigado a trabalhar num escritório de contabilidade, o escalaram para os serviços externos, uma tarefa incompatível com sua realidade física e psicológica, porque fizeram isso? Por que há pessoas que não compreendem as dores alheias? Talvez porque não compreendem coisa alguma... (Poderiam classificar como uma ficção para ilustrar esta história, mas deu-se exatamente assim e com maiores detalhes...) A morte passou pela sua mente muitas vezes, mas não daria esse prêmio a eles, não mereciam este sacrifício...

Já não usava mais as alpargatas da infância, neste tempo o menino já calçava botas improvisadas como se fossem ortopédicas. E no pé deformado ele colocava varias meias e apertava bem os cadarços, assim aliviaria as dores que sentia no tornozelo... 
E pelas ruas pedalando com a perna esquerda ia e vinha com papeis, dava recados, fazia cobranças, pagamentos nos bancos, percorria as repartições, fazia amizades, aprendizagem sobre a sua existência, descobria que havia homens maus e homens bons, e cada um deles apontava um caminho. Descobria que havia o caminho das pedras e das flores, e cada um deles levava a um destino.

Num dia encontrou um amigo que não sabia que existia... Sr. Armando aproximou-se do menino, não perguntou se lhe doía à perna, não perguntou nada, apenas se queria trabalhar no seu escritório e a função era apenas interna, teria sua mesa e seu espaço e novas oportunidades.

E assim começou o seu novo caminho pedalando a sua bicicleta com a perna esquerda, agora apenas para ir ao novo trabalho... Até hoje quem não se lembra do menino com deficiência, é só descreve-lo, aonde anda pelo mundo?



Veja nos comentários, a opinião de um dos maiores amigos que encontrei na internet: O Morani, amigo que Deus já recolheu.