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domingo, 1 de agosto de 2010

A CRIANÇA DA CALÇADA(Conto de Natal) de Rivaldo Roberto Ribeiro


Quando vi aquela criança na calçada, observei que ao seu lado havia uma espécie de vasilha onde as pessoas comovidas ou com remorso colocavam algumas moedas, julgavam que assim pagariam suas dividas com sua consciência e com Deus. No Natal tem destas coisas, um amor repentino e passageiro...
A criança aparentava três ou quatro anos, barrigudinha, de braços e pernas fininhas, calada, ali encolhida, alheia a tudo, no seu rostinho sujo havia um risco que era o caminho das lágrimas que por ali sempre escorriam. Nas narinas as secreções de algum resfriado mal curado denunciam o seu sofrimento e abandono...

Lembro-me que uma mulher passou por mim ofegante, tinha a barriga grande e já mostrava nove meses de sacrifícios, talvez inútil sonhos diante deste mundo brutal, ela olhou para a criança da calçada, sua fisionomia demonstrou pena e pavor...

A mulher tinha um marido, mas não sabia por onde ele andava, a ultima noticia dava conta que ele trabalhava num canavial qualquer neste mundão de Deus, a partir daí não se ouviu falar mais dele, se morreu enterraram por lá mesmo, mas a mulher desconfia que o safado se enroscou com alguma rapariga daquelas bandas...

Neste momento a mulher que olhava para a criança disfarçou, e num movimento rápido tentou enxugar as lagrimas que teimosas tentavam escorrer pelo seu rosto e balançou a cabeça acomodando seus cabelos lisos e finos. E com os passos devagar e doloridos, caminhava de cabeça baixa olhando o chão sem ver os buracos e pedras, o que ela via era o medo do futuro da sua cria ainda na sua barriga, uma comparação terrível com aquela criança na beira da calçada.

A mulher foi-se distanciando devagar, e num último olhar via a criança da calçada, apática, pois a sua pequena vida já tinha lhe ensinado isso, pois o mundo que a recebeu um dia de repente, sem perguntar se queria vir, sem perguntar aonde queria ficar, largou-lhe por ai, mais indefesa que um pequeno animal, porém a estes Deus deu o instinto no lugar da inteligência...

A mulher já distante mostrava-se apenas uma silhueta, uma forma disforme que já começava a desaparecer com a tendência no declínio da rua. A criança da calçada sem esperanças levantou-se e começou seu retorno para mais uma noite de pesadelos junto aos maiores que iriam se juntar na praça, com medo da polícia, do frio, da chuva, e das sombras fantasmagóricas da noite.

A noite foi rápida, a criança da calçada teve sorte, dormiu sossegada, não foi incomodada pelos maiores, pela polícia, pelos fantasmas, dormiu e sonhou, teve lindos sonhos, desta vez nenhum pesadelo, apenas sonhos... O sol começava a bater no seu rostinho sujo, assim despertava para seu destino: mais um dia na calçada, pedir esmolas aos transeuntes, uns olhavam com desdém, outros falavam qualquer coisa inaudível, coisa boa não poderia ser, ou se fosse era apenas de pena, e a criança da calçada barrigudinha, ficou ali de cabecinha baixa, não tinha coragem de olhar para o alto, nele estava seu futuro e não via nada...

A noite para a mulher da barriga grande, foi difícil, veio a dor do parto, seu barraco pobre não tinha quase nada, tentou não gritar, mas foi impossível, ouviram... Correram para socorre-la. A cidade lá embaixo brilhava como nunca, um vento fraco e morno corria entre as ruelas da favela. E assim depois das dores o seu presente de natal havia chegado: um lindo menino forte como nunca se viu, todos sorriam ao ve-lo, alguns choravam emocionados, todas as mulheres radiantes, andavam para cá e para lá espalhando a noticia que a criança da mulher havia nascido...

 ...Logo de manhã a mulher desceu a rua devagar até a esquina que levava para outra rua, e assim começava a descer o morro devagar passando pelas pinguelas, escadas e trilhos... Depois de algum tempo ela ergueu o olhar a frente na esperança de reencontrar o seu medo, que agora não existia mais...

E a criança da calçada de repente sentiu que pegaram na sua mãozinha devagar e suave, era a mulher da barriga grande, com o filho no colo e disse-lhe:

- Vem... Vamos...

Veja essa publicação na Folha de São Paulo (não me recordo a data), mas foi bem antes do ano 2010 no link:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/cjornalista/gd231205.shtml